O debate sobre a legalidade da guerra no Iraque continuou nesta quarta-feira, aqui em Londres. Dando sequência ao inquérito Chilcot, foi a vez de o procurador-geral britânico na época da guerra, Peter Goldsmith, chamado aqui de Lord Goldsmith, tentar explicar como e por que mudou de posição rapidamente sobre a legalidade da ação militar contra o regime de Saddam Hussein. Depois de defender por meses a necessidade de uma nova resolução do Conselho de Segurança da ONU para garantir a legalidade da invasão, em março de 2003, a tempo dos ataques preparados por Washington e Londres serem lançados, Goldsmith adotou a posição jurÃdica de que tal resolução não era mais necessária. , após reler os documentos da ONU relativos ao Iraque. Com isso, seu parecer, vital para permitir que o Parlamento apoiasse Tony Blair em sua decisão de ir à guerra, deu o sinal verde para o conflito do lado britânico.
Mas o que significa uma guerra ser legal? Não seria a guerra, naturalmente, um estado de ilegalidade, de abandono do diálogo civilizado em troca da irracionalidade da ação armada, geralmente causadora da perda de vidas inocentes? Desde que o mundo é mundo foi assim, claro, mas a Segunda Guerra Mundial mudou tudo, pois levou à criação da ONU (Organização das Nações Unidas), que tentou organizar o caos em que o planeta havia se metido. , deixa claro que nenhum paÃs pode invadir o território do outro sem autorização expressa do Conselho de Segurança da organização. Ações militares, a partir de então, poderiam acontecer desde que fosse com o apoio do conselho ou em caso de legÃtima defesa (um paÃs invade uma nação, que então tem o direito de contra-atacar).
Mas o debate é muito mais complexo. o jornalista e escritor William Shawcroos defendeu a guerra contra Saddam Hussein, argumentando que: a) o Iraque de hoje está no caminho da democracia; b) mesmo depois da criação da ONU, guerras continuam sendo travadas sem sua autorização. Do outro lado do debate, há muitos querendo levar o argumento da ilegalidade às últimas consequências. O escritor e ativista britânico George Monbiot, inclusive, acaba de criar um site para obter recursos para uma recompensa àqueles que tentarem prender Tony Blair por crimes de guerra: .
Shawcross tem razão ao dizer que guerras têm sido travadas à revelia da ONU. Israel ocupa territórios palestinos há mais de quatro décadas, apesar de o Conselho de Segurança já ter determinado sua saÃda. Os Estados Unidos ocuparam o Vietnã, Saddam Hussein invadiu o Irã e o Kuwait, a Rússia ocupou o Afeganistão, a Turquia invadiu Chipre, a Argentina tomou brevemente as ilhas Malvinas, a República Democrática do Congo virou a Casa da Mãe Joana para tropas de inúmeros vizinhos africanos etc, etc, etc. Tudo isso nas últimas décadas, sem autorização da ONU. Até mesmo a elogiada ação da Otan em Kosovo, em 1999, ocorreu sem o apoio do Conselho de Segurança.
A diferença da guerra no Iraque, polêmica que não deve morrer mesmo após o Inquérito Chilcot, foi o fato de que a invasão foi justificada por Estados Unidos e Grã-Bretanha com um argumento legal. Especialmente o governo britânico não queria iniciar uma guerra que não respeitasse a legislação internacional, já que o paÃs quer ser visto como um defensor desses mesmos princÃpios legais. Combater sem o apoio da lei abalaria tal posição da Grã-Bretanha nas relações internacionais, portanto a invasão precisava, preferencialmente, ter tanto base moral como justificativa legal.
Como sabemos, o argumento da aliança Washington-Londres era: o regime Saddam Hussein estaria contrariando resoluções da ONU, por manter armas de destruição em massa, e por isso merecia ser derrubado. Inúmeros outros regimes autoritários pelo mundo, da famÃlia Kim na Coréia do Norte a Robert Mugabe, no Zimbábue, passando pelo famÃlia Saud na Arábia Saudita, não seriam perturbados, pois a questão não era Saddam comandar uma ditadura. O problema era ele possuir armas de destruição em massa, apesar de não haver provas da existência de tais armamentos. Derrubado o regime, descobriu-se que Saddam falara a verdade, ele realmente havia se livrado de seu arsenal, fazia tempos. A suposta legalidade da guerra perdeu seu alicerce e agora volta a assombrar aqueles que a iniciaram.