Fraude e consumismo
Na festa de entrega do Oscar, não deu para o pessoal do Jardim Gramacho. O belÃssimo Lixo Extraordinário acabou perdendo a estatueta de melhor documentário para Trabalho Interno, que afetou os mercados internacionais em 2008. Mas o fato de a história de Tião, Zumbi e cia ter sido selecionada para o maior palco do cinema mundial já foi um grande feito. Especialmente considerando que o vencedor é também um fantástico retrato do nosso tempo e deveria ser visto por qualquer um interessado em entender as dinâmicas do capitalismo atual. Com uma coleção de reveladores depoimentos, apesar de muitos personagens centrais da história terem se recusado a dar entrevistas, Trabalho Interno tenta responder a uma pergunta essencial: por quê? Por que os Estados Unidos chegaram à desastrosa situação financeira de 2008/2009? Por que a mais rica nação do planeta se tornou refém da ciranda financeira de um capitalismo de grandes remunerações, mas altÃssimo risco?
O filme inicia sua narrativa bem longe de Wall Street, na Islândia, mostrando como um pequeno paÃs europeu, com pouco mais de 300 mil habitantes e uma alta qualidade de vida, deixou-se iludir pelas promessas de ganhos fáceis da ciranda financeira. No inÃcio da década passada, o paÃs desregulamentou seu setor financeiro, abrindo as portas para o capital estrangeiro e permitindo que a ilha vulcânica entrasse em ebulição. A erupção econômica veio no final de 2008, quando, diante da quebra de grandes instituições financeiras nos Estados Unidos e a paralisação do crédito mundo afora, o paÃs não conseguiu pagar suas dÃvidas. A Islândia, cujos bancos tinham débitos muito maiores do que todo o PIB nacional, viu sua economia despencar cerca de 7% em 2009. O desemprego disparou para 9%, e a ilha precisou pedir um empréstimo de US$ 2 bilhões ao Fundo Monetário Internacional. Trabalho Interno relembra esses fatos, mas lhes dá uma diferente perspectiva, ao mostrar como instituições islandesas foram, gradativamente, sendo cooptadas pelos bancos de investimento. Até mesmo aqueles que deveriam controlar a insanidade de muitas das suas transações bancárias acabavam trabalhando para esse poderoso mundo corporativo.
Ao falar dos Estados Unidos, o documentário expõe as mesmas relações suspeitas, que aconteceram numa proporção muito maior e por muito mais tempo. Mostra como, desde a época do presidente Ronald Reagan, as operações do mercado financeiro foram sendo gradativamente flexibilizadas até o ponto de ninguém mais saber quem cuidava do dinheiro de quem. O auge da ciranda veio no inÃcio deste milênio, com o aumento das operações em derivativos. O documentário também expõe a forma como o poder polÃtico americano, que deveria supervisionar e limitar a expansão do financeiro, foi pouco a pouco dominado pelos bancos. Seus dirigentes, como o ex-chefe do Goldman Sachs Henry Paulson, que viria a ser o secretário do Tesouro no auge da crise, foram ganhando mais e mais espaço dentro das instituições americanas. O limite entre o que era mercado e o que era Estado ficou difÃcil de precisar.
A parte mais fascinante de Trabalho Interno, entretanto, diz respeito à academia. O documentário revela como as grandes universidades americanas também foram cooptadas pelo mercado, com respeitados professores produzindo estudos dizendo que uma área ia muito bem, enquanto era remunerado por esse mesmo setor. Foi o caso da própria Islândia, sobre a qual um acadêmico, Frederic Mishkin, da Universidade de Columbia, escreveu que sua economia estava forte e era um exemplo para o mundo, pouco tempo antes de desmoronar. O filme revela que o trabalho havia sido financiado pelas autoridades islandesas, algo que o professor tentou depois . O diretor do filme, Charles Ferguson, no mesmo jornal.
A força do documentário é inegável, mas a principal pergunta que ele se propõe a responder, por que afinal a crise ocorreu, fica parcialmente sem resposta. A história narrada pelo ator Matt Damon apresenta a realidade dos últimos 30 anos como se Wall Street tivesse cinicamente sequestrado o poder público e, com ele, o futuro da nação. Há fortes argumentos que sustentam a tese, mas é difÃcil acreditar que o americano médio tenha sido apenas uma vÃtima involuntária, facilmente enganada por um grande esquema criminoso. Afinal, não se pode negar que a reinvenção do capitalismo americano na entrada dos anos 80 serviu aos anseios consumistas da mais rica nação do planeta. A elite polÃtica que gerenciou o sistema a partir dos dois grandes partidos americanos (Democrata e Republicano) foi seguidamente e democraticamente eleita, enquanto os bilionários do mercado eram venerados pela nação como exemplos de sucesso. A mesma sociedade que ainda sofre com os efeitos da crise abraçou por 30 anos o consumismo desenfreado, estimulado por importações asiáticas baratas e focado na ilusão da casa própria acessÃvel a todos. O Ãmpeto de gastar sem se preocupar com o amanhã espalhou dÃvidas pela sociedade que com o tempo saÃram do controle. Bancos e governo, com aval acadêmico, criaram uma fantasia econômica que quase destruiu a economia americana, é verdade. Mas para isso contaram com a ajuda da febre do consumo, da ânsia pela riqueza sem limites e da ilusão de que dinheiro poderia cair do céu.
°ä´Ç³¾±ð²Ô³Ùá°ù¾±´Ç²õDeixe seu comentário
Pesquisa sobre o "Movimento Zeitgeist", e sobre os filme homônimos, que voce vai entender o que foi que aconteceu. aliás compra e venda, oferta e procura são mecanismos arcaicos e não tem mais relevância neste tempo, neste dia e Era. Em decorrência dos avanços tecnológicos, mais precisamente "cibernetização", sou enfático em dizer: "ESTAMOS DESATUALIAZADOS COM O CONHECIMENTO VIGENTE".
Mão-de-obra humana esta a ficar obsoleta!!
Este sistema contra-produtivo e de estagnação social têm de acabar!!
A parte difÃcil dessa coisa é fazer com que as pessoas reconheçam a sua parte de culpa nesse imbroglio todo(Parte essa que deveria ser considerada diretamente proporcional ao poder financeiro ou poder polÃtico de cada um, eu acho, mas isto é uma divagação).
Mas, me parece que é muito mais um problema de deterioração de valores do que qualquer outra coisa, como se os cidadãos americanos - todos os cidadãos americanos - tivessem acreditado piamente no discurso daquele personagem do filme 'Wall Street'(Gecko?) quando ele disse que a ganância era 'boa' e que havia elevado a humanidade a novos patamares(ou algo assim, estou com preguiça de procurar).
Bem, a ganância quebrou o maior paÃs do mundo, trouxe miséria e desespero a milhões de seres humanos. E pelo que temos visto no noticiário, ninguém aprendeu nada com essa história toda.
É muito bom ler comentários de quem consegue de despir de um "nacionalismo" irracional, que transforma em bom toda e qualquer produção nacional e em grande porcaria tudo que não foi feito aqui. Grande abraço!
Rogério, muito bom o assunto e dá azo a proveitosas reflexões: vou assistir ao filme assim que puder. No mesmo sentido e apontando para a ganânia como a principal responsável pela recente crise sistêmica dos mercados, recomendo-lhe o muito interessante livro do escritor norte-americano Sarna (History of Greed, John Wiley & Sons, 2010).
Muito oportuno seu artigo. Por enquanto não houve "mea culpa" feito de forma suficiente. Os acadêmicos enfiaram o rabinho embaixo das pernas e mudaram de assunto.
No princÃpio intelectuais de esquerda do mundo todo se indignaram com a rapidez com que surgiram trilhões de dolares pra "salvar" o sistema bancário.
Depois de salvos, os bancos se fizeram de surdos e nada foi regulamentado no campo minado das transações financeiras internacionais.
Se nada for feito, infelizmente populções pobres sofrerão muito ainda, com o disparar dos preços dos alimentos e com a escassez da água. Não tenha dúvidas que tudo isso está ligado.