Lei da Anistia, paz e justiça
O Supremo Tribunal Federal decidiu: a anistia assinada em 1979 é mesmo "ampla, geral e irrestrita". A corte rejeitou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil de uma revisão da legislação. A OAB tentava retirar do perdão generalizado do governo João Figueiredo o crime de tortura cometido por agentes do Estado, nos chamados "porões da ditadura". Na visão da entidade, a tortura estaria fora dos crimes políticos previstos pela anistia, devido à sua natureza de crime contra a humanidade. Mas o STF manteve o espírito original da lei: mais do que um ato de justiça, na interpretação do tribunal, a legislação foi um ato político de pacificação nacional, em que o Estado militar e aqueles que se lançaram contra ele ficaram isentos de punição por suas ações violentas ou políticas. Entre a justiça e a paz, optou-se pela paz.
Essa difícil escolha tem marcado muitos dos conflitos das últimas décadas mundo afora. Muitas vezes, a busca por justiça, que pode se confundir com vingança ou revanchismo, mantém acesa a chama do ódio e lança sementes para uma retomada do conflito. Por isso mesmo a África do Sul, onde uma punião à elite branca por décadas de apartheid era justificável, escolheu o caminho da paz, mas sem apagar da história os crimes cometidos. A , considerada de forma geral bem-sucedida, deu a chance para que vítimas do regime racista sul-africano prestassem depoimento e descrevessem seu sofrimento. Autores de crimes eram então confrontados e tinham a chance de dar sua versão, podendo, mediante a admissão de responsabilidade, ser anistiados. Justiça exatamente não foi feita, até porque a ideia não era prender ninguém. Mas a comissão significou um processo de pacificação nacional. Visava o futuro, não o passado.
Para Ruanda (foto acima), após o genocídio de tutsis e hutus moderados em 1994, a comunidade internacional viu a necessidade de realização de justiça propriamente dita. Para isso, a ONU criou o , que continua condenando envolvidos na organização da campanha de extermínio. Mas no país africano um processo paralelo de reconciliação foi iniciado, , que colocam frente à frente parentes de vítimas e autores de massacres. Não os que coordenaram a matança, mas aqueles que, diante da histeria coletiva e muitas vezes sob a ameaça de comandantes locais, saíram com facão em punho matando indiscriminadamente. São encontros bastante emocionais que terminam em sentenças leves, em troca da oportunidade de as vítimas terem seus casos esclarecidos.
O Brasil teve algo semelhante, o julgamento sem valor jurídico da Lei de Segurança Nacional, no início dos anos 80, no Teatro Municipal de São Paulo. O evento reuniu vítimas da repressão militar que descreveram suas experiências. Mas, ao contrário dos tribunais comunitários de Ruanda, nenhum dos autores dos crimes estava presente. A sociedade brasileira ainda não estava preparada para dissecar seu passado recente, assim como não estavam seus vizinhos sul-americanos. Com o passar do tempo, entretanto, nações como Chile e Paraguai tiveram suas "comissões da verdade" para expor as feridas deixadas por seus regimes de exceção. O Brasil ainda espera pela sua, e o assunto virou polêmica. Já a Argentina foi além e partiu para o julgamento e prisão dos líderes da sua sangrenta ditadura militar.
Processos políticos costumam levar a escolhas, quase sempre difíceis e às vezes distantes do caminho desejado originalmente. Na falta do ideal, opta-se pelo possível. A pacificação pode exigir o abandono da punição, ou pelo menos de sua aplicação plena. Algumas sociedades, no entanto, não desistiram. Garantida a paz, foram atrás de sua parcela de justiça.