Caso Paula e o poder da dúvida
Há quem não acredite na imprensa. Sei que algumas pessoas dizem não acreditar em praticamente nada do que lêem em jornais, revistas, ouvem no rádio ou vêem na televisão. Tal pensamento representa para nós, jornalistas, um desafio. Mas também deveria servir de inspiração. Afinal, a dúvida, ou muitas vezes até o ceticismo, é uma das maiores armas do bom jornalismo. Qualquer repórter, ao receber no colo uma informação nova, deveria fazer duas coisas: em primeiro lugar, duvidar; em segundo, correr atrás das fontes pertinentes para saber se sua dúvida tem, ou não, fundamento. É preciso se mexer, mas sem abandonar seu papel de questionador.
O caso envolvendo a brasileira Paula Oliveira, que afirmava ter sido atacada por três neo-nazistas na SuÃça, deixou o governo brasileiro e boa parte da imprensa do paÃs em situação delicada. O episódio chocou a opinião pública por causa da tortura que teria sido aplicada, com cortes em várias partes do corpo da vÃtima, e porque o suposto ataque teria provocado o fim de uma gravidez de gêmeos. Mas pouco depois peritos suÃços comprovaram que Paula não estava grávida no dia em que disse ter sido agredida e disseram que os cortes podem ter sido infligidos por ela mesma. Na terça-feira, dia 17, a advogada foi indiciada e impedida de deixar a SuÃça, sob acusação de "induzir autoridades ao erro".
O problema da maioria da cobertura jornalÃstica desse caso no Brasil foi a falta de dúvida de muitos jornalistas. As palavras ditas pelo pai da suposta vÃtima foram apresentadas por grande parte da mÃdia como a verdade absoluta. Para piorar, o governo brasileiro as abraçou completamente e as revendeu a veÃculos de imprensa, entre eles a ´óÏó´«Ã½ Brasil, como um fato comprovado e digno do selo presidencial.
Nós, aqui na ´óÏó´«Ã½, somos pagos para duvidar. Constantemente a ´óÏó´«Ã½ se vê no dilema entre dar uma notÃcia rapidamente ou esperar alguma confirmação adicional. Nossa obrigação é optar pela confirmação, o que faz com que a ´óÏó´«Ã½ pareça "lenta" em algumas notÃcias levadas ao ar imediatamente por outros veÃculos. No caso da brasileira na SuÃça, nós ficamos sabendo do suposto ataque na noite de quarta-feira, dia 11. "Quem está dando a notÃcia?", perguntei ao redator que me ligara de São Paulo para a redação aqui de Londres. "Está na TV." Fomos checar em agências de notÃcias, e nada. A parte em inglês da ´óÏó´«Ã½ desconhecia. Aqui, se o caso não foi apurado diretamente por nós, precisamos de pelo menos duas fontes para publicá-lo no site ou levá-lo ao ar. Ou alguma fonte de credibilidade a que possamos atribuir as informações. Mas não tÃnhamos nada isso e não podÃamos nos basear apenas num canal de televisão, que por sua vez se baseava em um blog. Preferimos esperar para saber se o governo brasileiro se pronunciaria sobre o assunto.
Ainda naquela noite, depois de falar com um porta-voz do Itamaraty, publicamos nosso texto. AtribuÃmos tudo ao Ministério das Relações Exteriores. Em nove curtos parágrafos, nosso redator Caio Quero teve o cuidado de dizer seis vezes que o Itamaraty era o responsável pelas informações. O texto ainda se referia aos agressores como "supostos neonazistas". Foram cuidados editoriais importantes, que resultaram em um texto correto. O governo brasileiro estava divulgando um caso chocante como verdade, o que era uma notÃcia que não poderÃamos ignorar. Mas não apresentamos nada como fato consumado. Tudo o que descrevemos eram hipóteses, tudo era "segundo o Itamaraty". Onde poderÃamos ter feito melhor foi no tÃtulo. "Brasileira grávida de gêmeos é agredida na SuÃça e perde bebês", dissemos. Mas o melhor teria sido algo como "Brasileira diz ter sido agredida na SuÃça e perdido bebês" ou "Itamaraty denuncia agressão a brasileira na SuÃça".
Na manhã seguinte, ao chegar à redação fui informado que nosso repórter em Berlim, Marcio Damasceno, nos alertava para o fato de que na Alemanha uma mulher havia sido condenada por acusar neonazistas de atacá-la, quando na verdade ela mesma tinha se cortado. Não publicamos isso, mas a informação serviu como um fator a mais para alimentar nossa dúvida. Confesso que fui pego de surpresa. Apesar do cuidado da noite anterior, minha tendência naquele momento era achar que a história fosse verÃdica. Ficamos então ainda mais atentos para não abraçá-la indevidamente. O caso segue sendo investigado na SuÃça, e ainda não está provado se o suposto ataque ocorreu ou não.
O episódio traz certamente muitas lições para a imprensa. No caso da ´óÏó´«Ã½ Brasil, olhando para trás sempre se pode dizer que poderÃamos ter feito melhor. Mas acredito que fizemos, em grande parte do processo, o que todo jornalista deveria quando se depara com um fato novo em suas mãos: duvidar sempre, enquanto corre atrás dos fatos para esclarecer sua dúvida.