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Eu já havia iniciado um texto sobre a Organização das Nações Unidas quando li o comentário de Reinaldo Azevedo sobre a instituição em seu . Azevedo aponta erros em um relatório da ONU sobre assassinatos em São Paulo que nós reproduzimos aqui na ý Brasil. Aparentemente, o nosso texto, que também carecia de clareza e detalhes, citava dados de um documento equivocado. Estamos esclarecendo com a ONU as informações divulgadas e, se houver erro, publicaremos um novo texto. Mas desde já agradeço ao jornalista por ter apontado possíveis problemas, pois nos dá a chance de corrigi-los.
No mesmo texto, Reinaldo Azevedo espinafrou de maneira geral as Nações Unidas, que para ele é "irrelevante" e "um valhacouto de ditadores" e "demagogos latino-americanos". Disse ainda que a ONU é "visceralmente antiamericana". E é aí que eu chego ao que já planejava escrever aqui. Na semana passada, o presidente brasileiro abriu a 62ª Assembléia Geral das Nações Unidas, que contou com discursos de vozes diversas, incluindo o americano George W. Bush e o iraniano Mahmoud Ahmadinejad (foto acima). Falatório dispensável? Populismo barato? Para alguns, sim. Mas a imprensa tem a obrigação de ir além e evitar imagens preconceituosas, explicando o que realmente está por trás da ONU e o que nela está em jogo.
Quem precisa hoje da ONU? A maioria talvez diga que são os países pequenos, para que seus "ditadores" ou "demagogos" tenham um palanque. Mas eu digo que quem realmente precisa da ONU são as nações mais poderosas, pois apenas a organização pode lhes dar uma moeda valiosa nas relações internacionais pós-Segunda Guerra: legitimidade. A presença de 192 países, independentemente de sua ideologia, riqueza ou respeitabilidade, dá legitimidade às Nações Unidas. E as grandes potências, especialmente os Estados Unidos, procuram constantemente legitimar suas ações por meio dessa tão criticada instituição.
Se a ONU fosse simplesmente um ambiente "antiamericano", os Estados Unidos poderiam abandonar o órgão, como aliás pedem alguns exagerados daquele país, como o ultraconservador, e até hilário, site . Mas mesmo os neoconservadores que chegaram ao poder com o governo Bush sabem da importância da ONU, especialmente seu Conselho de Segurança. Não foi à toa que John Bolton, seu crítico ferrenho, representou Washington na organização. Se ela fosse mesmo "irrelevante", Bolton, pragmático como é, não perderia seu tempo defendendo lá dentro os interesses do seu país.
A única potência que levou às últimas conseqüencias seu ceticismo em relação à ONU foi a finada União Soviética, que em 1950 decidiu abandonar o Conselho de Segurança por achar que o assento da China deveria ser do novo regime em Pequim, comunista. Resultado: sem a ameaça dos então sucessivos vetos soviéticos, e com o assento chinês ainda nas mãos de Formosa (Taiwan), os Estados Unidos conseguiram que o órgão aprovasse uma intervenção militar na Coréia para conter os avanços das tropas norte-coreanas. Em poucos meses Moscou percebeu ter feito bobagem e voltou correndo ao conselho.
Em 2003, o governo americano foi à ONU buscar seu apoio à invasão do Iraque porque sabia que uma ação com o carimbo do Conselho de Segurança seria mais bem aceita internacionalmente. Não obteve uma resolução para o ataque, mas tentou, e conseguiu, obter outra, logo após a queda de Saddam Hussein, que legitimou a ocupação do Iraque. Quando a situação no país começou a piorar, um envolvimento maior da ONU passou a ser o sonho de consumo de muitos no governo e no Exército americanos. Ou seja, mesmo no conflito no Iraque, o maior exemplo de unilateralismo americano desde a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos sonharam com o apoio da ONU em vários momentos. Pergunte aos outros quatro membros permanentes do Conselho de Segurança (Grã-Bretanha, França, China e Rússia) se querem deixar a ONU ou abrir mão de seu poder de veto no órgão, e a resposta, se vier, será uma gargalhada.
Sobre as agências da ONU: elas são vulneráveis a críticas, já que suas ações são de eficiência duvidosa. Mas elas fazem da ONU um organismo ainda mais legítimo, devido à busca de soluções para problemas sociais no mundo todo. Nada disso passa despercebido pelas grandes potências. Quem detém o poder sabe que sua manutenção e seu exercício são muito mais fáceis quando acompanhados de legitimidade. A ONU, mesmo aos 62 anos e em crise de identidade, ainda é para onde todos vão à sua procura.